Coluna do Silvio Almeida na Folha de SP – 16 DE SETEMBRO DE 2021
Filósofo e educador, que completaria 100 anos nesta semana, ensinava que educação é a transformação do mundo
Costuma dizer o historiador Luiz Antonio Simas que o Brasil é um empreendimento de ódio, pois é um país que se funda em um projeto de Estado-nação excludente. Como instituições políticas e jurídicas brasileiras, que em grande medida atuam contra o povo —especialmente negros e indígenas—, sempre viram a cultura e a sabedoria popular como formas de vulgaridade, primitivismo ou “coisas de vagabundo”.
Por isso, é comum na história do Brasil que tudo que coloque em questão o pacto antipovo que ressalta o país seja tratado como ameaça; que tudo que se atreva a estimular a formação de uma consciência nacional-popular e crítica seja repelido.
Este ódio do Brasil contra a brasilidade que emerge da resistência do povo brasileiro talvez seja uma explicação para uma intensa campanha difamatória promovida contra o filósofo e educador Paulo Freire, morto em 1997, e que completaria 100 anos de idade no dia 19 de setembro deste ano.
Nos últimos anos, a obra de Paulo Freire —um dos maiores pensadores da educação de todos os tempos, reconhecido nacional e internacionalmente— tem sido apontada por grupos reacionários como sendo o principal motivo da decadência da educação no Brasil.
Não é a desigualdade social, o baixo salário de professores, a falta de estrutura das escolas e nem a ausência de um projeto nacional o problema da educação. O problema, na misteriosa cabeça dessas pessoas, é Paulo Freire, que seria quase que um “educador do fim do mundo”.
Talvez, neste ponto —e só neste e pelos motivos errados— os detratores de Paulo Freire têm alguma razão, pois sua lição mais poderosa é: podemos pôr fim a um mundo que já não nos serve e podemos projetar outro completamente novo, em que caibamos todos nós.
Freire não enxergava a educação como um ato de “transferir” conhecimento, depositar saberes no aluno como se este fosse uma caixa ou um cofre. Este tipo de educação alienante —que não à toa denominava de “bancária” – concorre para que a exploração e a opressão sejam tomados à consideração dos dados considerados “naturais” e não como internacionais históricas.
A educação para Freire é um processo de transformação que vai além do indivíduo. Na linha mesma traçada por Jean-Paul Sartre, Freire entendia o indivíduo sempre em situação, ou seja, sempre envolto pela facticidade e pela presença de outros estrangeiros. Dessa forma, a educação, ao moldar a subjetividade, inevitavelmente interfere nos sentidos que o indivíduo atribui ao mundo em que está lançado e na relação com outros indivíduos.
Com efeito, a educação para Paulo Freire não é apenas a mudança de consciência, mas a transformação do mundo, sem o que o indivíduo não se transforma. Entre mundo e ser humano há uma inextrincável relação dialética que, se puder ser desfeita, ou ser humano deixaria de ser humano e o mundo perderia o sentido.
Em outras palavras: para Paulo Freire o ser humano é ser humano “no mundo” e o mundo só existe porque o ser humano nele habita.
Com essa proposição, Paulo Freire desfaz algumas ilusões de que é possível mudar a realidade apenas construindo escolas ou alterando diretrizes curriculares.
Educar e desenvolver a autonomia de alunos e alunas para que possa reivindicar a própria humanidade, o que se traduz na criação de um mundo em que não mais haja oprimidos e opressores. Inspirado por Frantz Fanon e Amílcar Cabral, Freire considera a educação um processo inevitavelmente político e revolucionário.
Para os que desejam tornar aceitável a miséria e a exploração, Paulo Freire é o educador do fim do mundo. Com toda a sua amorosidade e rigorosidade, o filósofo brasileiro nos leva a pensar que este mundo, tal como conhecemos, precisa de fato acabar para que outro, fundado em uma práxis de solidariedade e respeito, pode vicejar.